O Ovo do avestruz
Se ler nas entrelinhas é essencial para entender o mundo, imagina como é importante para se poder entender um texto. Principalmente se ele for altamente metafórico.
Explico o que se sucede.
Durante o encontro presencial do curso de formação, uma espécie de “reciclagem” para graduados em pleno exercício de carreira, a proposta, simples e direta era exercitar a leitura. Nem escrever, nem desenvolver tese de doutorado, apenas ler, e é claro, interpretar o que foi lido.
Mas me surpreendi ao perceber as- digamos - diferentes interpretações, seja por excesso de ego ou pela completa falta dela. Enquanto uns palestravam bem, uns tantos o faziam em excesso, e outros muitos se calavam, e neste grupo de calados eu também me estava.
Independente destes acontecimentos é importante relatar que no caso dos nove membros do meu grupo de leitura não houve acordo. Nenhum. Nem em termos de interpretação, nem em termos de considerar a opinião dos colegas. O resultado foi um “seminário” superficial, com uma leitura que ficou apenas na camada mais rasa.Felizmente, a avaliação imediata da professora sobre a apresentação percebeu e comentou imediatamente as falhas, sem contudo dizer diretamente quais eram elas, tampouco corrigindo-as.
O texto proposto a ser analisado pelo grupo foi “o Avestruz”.
O conto escrito em primeira pessoa narra à história de um menino que sonha em ganhar no seu aniversário de dez anos um avestruz. O enredo da história se desenvolve a partir do entrave que se gera a partir da impossibilidade de concretização do desejo do garoto, pelo fato dele morar em um pequeno apartamento na cidade.
Dentre as principais informações estão como ele passou a se interessar pelo bicho e todo o argumento utilizado pelo narrador para convencê-lo de que não era possível receber um avestruz de presente. De uma maneira bem humorada o narrador traz para o leitor diversas informações sobre o animal em questão, como dados biológicos, científicos e até desenvolve uma teoria de como o avestruz “ foi um erro da natureza”. Teoria esta um tanto preconceituosa.
Depois de toda a argumentação o narrador e também personagem consegue convencer o menino de que o avestruz não seria a sua mascote ideal. O garoto desistiu definitivamente do candidato a mascote ao tomar conhecimento de que o avestruz come de tudo “inclusive pedaços de ferro e madeiras. Joguinhos eletrônicos por exemplo”. E sendo assim, o amor pelos joguinhos foi maior que o desejo pela mascote.
No final do conto o narrador desiste de convencer o garoto pois ele decide trocar “ o avestruz por cinco gaivotas e um urubu”. A narrativa se encerra com o pedido do narrador a amiga; ela deveria levar o garoto a um psicólogo.
Mas agora vamos ao que interessa; a interpretação.
Em uma primeira leitura, inclusive influenciada pelo título “avestruz”, conclui-se que o tema principal do texto é o animal avestruz. Mas será mesmo?
Se substituíssemos o avestruz por uma vaca, as cinco gaivotas por cinco cabras, e o urubu por um porco, só mudaríamos de bichos, mas a questão do devaneio do garoto continuaria a mesma. Mas e as várias informações sobre o avestruz? Simples. Estas poderiam ser substituídas por também explicações biológicas e científicas sobre a vaca. Até a teoria sobre determinado bicho ser “um erro da natureza “poderia ser utilizada, era só aplicá-la na vaca; tamanho grande, quatro estômagos, ruminação...são inúmeras as informações possíveis.
Também poderia ser qualquer outro animal, como um peixe boi por exemplo. Seria necessário apenas a narrativa inserir o corpulento mamífero ao desejo do garoto e transmitir as informações da mesma forma que foi feito nas descrições do avestruz.
Desta forma – agora sim- em uma leitura mais profunda, podemos concluir que o tema principal do texto não é especificamente o avestruz. O texto fala todo o tempo do desejo de se ter algo, e este algo é o avestruz. Existe uma situação de absurdo que se estabelece na voz do narrador-personagem e que também é transmitida para o leitor, porque que este desejo entra em conflito com o mundo adulto. Este desejo pode refletir o mundo da criança que vive em outra realidade. Talvez por ainda desconhecer todos os princípios que norteiam a vida dita como “real”.
Uma vez li a redação de um aluno que dizia que sonhava ser um personagem de anime. Também havia um programa de televisão “ O mundo da lua” em que um garoto de dez anos imaginava situações “absurdas” e as narrava em seu gravador, “Planeta terra falando...planeta terra falando...diretamente do mundo da Lua.Onde tudo pode acontecer...”no final de cada história, mesmo sem concretizar o que havia idealizado na imaginação , conseguia encontrar uma solução para os seus problemas.
Imaginar desta forma não é tão absurdo assim, não se trata de retardo, nem de uma pessoa mimada que quer tudo o que vê. Os sonhos , os desejos que temos é algo inexplicável, não tão simples de explicar dizendo que são mera fuga da realidade ou apenas busca de algo melhor.Para saber basta se questionar porque uns sonham e lutam em fazer medicina e outros nem sequer se permitem sonhar com isso. Mais ainda basta comparar nossos próprios desejos com os dos outros.Nossa visão de mundo com o mundo dos outros. E como este próprio mundo muda, com nossas vivências e com o passar dos anos.
Sendo assim, pode-se concluir que a mensagem implícita na interpretação do conto “Avestruz” são os desejos que se formam na mente de uma criança. Anseios, sonhos que se formam na imaginação e que são impossíveis de se concretizar na realidade. É preciso ler na entrelinhas para se compreender a mensagem do texto. Caso contrário nem adianta falar do avestruz, já que na verdade a leitura nem saiu do ovo. Ou seja, ler que o tema principal deste conto é ao avestruz é o mesmo que tentar descrever as características do bicho a partir do que se vê apenas ao observar um ovo. É permanecer apenas no raso, na superfície do texto.
Ler é ganhar um passaporte para outros lugares, para outras possibilidades e de repente, tornar-se alguém mais criativo, mais ávido por ler cada vez mais.
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